O Pulo



O tempo,
 passa de repente.
O vento,
 uiva na janela.
Uma brisa fresca
Transpassa o quarto
Arrepio de frio,
talvez medo...
Um fio de orvalho
escorre no parapeito.
Trôpego,
chega a janela e olha o vazio.
Na rua vários andares abaixo,
barulho de carros...
Pula!
 No fim o asfalto rubro de sangue
e o trafego.
Alguns param
Espiam,
Outros desviam,
Todos seguem adiante
e a vida
 continua.
  
Alexandre de M. Barcelos da Silva

O Suicida



Com o olhar fixo na janela, ele percebe na pele do rosto a brisa entrando suavemente através do buraco aberto na noite.
Estampado nos olhos, uma expressão de terror e conformismo, amenizada pelo suave beijo da brisa noturna.
Escorre-lhe pela testa, um fio de suor. O calor sufocante, impregnado de monóxido de carbono subindo do asfalto em direção ao luar, faz brotar em sua face sulcos negros de poluição e transpiração misturando-se as lágrimas que escorem dos olhos.
            As idéias enfumaçadas e embaralhadas pelo efeito do álcool, drogas e tranqüilizantes, não fazem sentido algum, apenas marcham em mil direções sem paradeiro certo, inesperadamente chegam em um único lugar... no parapeito da janela bem a sua frente.

Pulo? ....
Ou?...

            Dia após dia, sair em busca de emprego e não encontrar.
Ver aquelas mesmas caras fechadas...
A mesma desatenção,
As mesmas afirmações:

Os pensamentos vem e vão em sua cabeça, milhões de coisas simultâneas pipocam em flash como se algum anjo sem escrúpulos, tirasse fotos da estúpida situação de sua vida.

            “- Infelizmente o senhor é muito qualificado para esta vaga.”
            “- O senhor está acima da idade para esta vaga.”
            “- Muito bem senhor, nós entraremos em contato.”
           
O que dizem não importa, importa apenas que não há lugar para o fantasma sentado na poltrona de olhar fixo na noite, perdido em si mesmo, tentando decidir-se a...

Pular.

Parecia ser a única opção.
Não havia outra solução.
A noite oferecia-se como bálsamo e alívio para aquela dor imensa.
Sua situação era estremada.
A perda precoce do único filho.
A falta da ex-mulher.
Tudo sua culpa!
... O acidente, fora ele quem os matou!
“Tava de cara cheia!”
“Verme Imundo!”
Igual a quando perdeu o emprego por beber durante o expediente.
Mas ele precisava beber.
Beber para esquecer, ele não sabia bem o que mas sentia que precisava beber.
O enorme buraco no peito que eles deixaram, sufocava-o como duas mãos a apertar sua garganta. O buraco na barriga causado pela tristeza e pelo sofrimento da solidão e da culpa, corroia sua alma, o álcool dava-lhe enjôo.
A realidade ao seu redor é dura e implacável.
A única saída é drástica.
O remédio, amargo e extremo.
            Antes que o torpor lhe impeça de levantar, toma impulso e atira-se, num arroubo, em direção a janela carregando a mesinha, que dormia ao lado da poltrona.
            Pega com dificuldade a solitária cadeira que repousa ao lado da mesa capenga e apoiando-se nela aproxima-se da janela.
            A cabeça tonteia, o corpo estremece pela sensação de frescor, causado pela brisa entrando no apartamento.
A boca da noite lhe parece tenebrosa e medonha como a boca de um dragão de bafo abrasador, espreitando a hora de devorá-lo.
Regurgita no tapete uma gosma branca com gosto de ácido biliar e sem deter-se por muito tempo, continua em direção a janela enquanto vomita.
-Que merda, esta porcaria de whisky falsificado, tá me deixando enjoado......... saco.........
Sobe na cadeira e cambaleante, pendura-se na janela, debruça-se sobre o parapeito, o frescor do ar de fora de seu covil alivia o enjôo, enquanto ele pensa ...

Pulo?

            Lá em baixo os barulhos da cidade, chegam a seus ouvidos como um soco no estômago.
            O ronco dos carros, o barulho de panelas, música, choro de criança, novela na tv, sussurros de desejo ditos na alcova pelos amantes, enfim, sons de vida a conflitar com seu desejo de morte, fazem com que ele sinta náuseas outra vez e com perplexidade, percebe que apesar de tudo, ainda sente apego pela vida.
            Atordoado, olha pela abertura na parede em direção ao desconhecido.
            Indeciso, mede a distância que o separa do caótico tumulto.
            Ir e vir de gente e carros.
            Uma vertigem o faz retroceder.
Apóia-se na lateral da janela.
            Repara que a maresia e a umidade da noite acumularam-se no parapeito, formando uma poça escorrendo pela parede, em direção ao barulhento caos urbano, reflete mais um pouco sobre sua condição...

Pulo?

            Vê-se compelido a subir na janela.
O ar noturno que sopra, colhe-o no rosto jogando os cabelos e as lágrimas para trás em um sorriso de carranca, estampa em seu rosto uma careta.
Sente-se impelido a pular.
Em poucos minutos que parecem eternos, ele reflete sobre sua decisão.
O véu da memória, corre como o negativo enfumaçado de um velho filme caseiro em oito milímetros. Os argumentos corroboram sua decisão...

Pular!

Ele olha para trás, e se despede da medíocre vida que já fora cheia de promessas e que hoje não passa de uma existência solitária e sem sentido.
O aluguel atrasado há 2 meses, a luz cortada há 15 dias, dão ao ambiente iluminado por velas, uma atmosfera de lúgubre tristeza, típica de capela mortuária.
O desespero e a pilha de contas amontoadas jazem  no chão junto a mesinha ao lado da poltrona rota e esfiapada. A caótica situação do ambiente reflete o estado emocional em que ele se encontra, e o impulsiona a ...

Pular!!

Essa era a idéia obsessiva que, como um caleidoscópio , ia e vinha tomando formas dissimuladas e fantasmagóricas, efeito do sofrimento e do monte de porcarias que ele tomou naquela noite.
A pergunta pulsa em sua cabeça como um segundo coração. Frio, impiedoso, sedento por sua vida, alimentado pelo medo, como verdadeiro coração é nutrido por sangue, seu sangue.
De repente ele pensou no sangue, no seu sangue, derramado lá em baixo na calçada.
Essa visão o encheu de terror e o coração bateu mais forte, em um ritmo frenético, em um frenesi de sensações desencontradas.
            A resposta continua sendo a pergunta...

Pular!?

Perdido em si mesmo, envolto em interrogações, sentindo o suor correr-lhe pela face, tentava decidir.
Faltava-lhe coragem para atirar-se pela janela em direção ao solo mas, a frustração, os fracassos, a dor, só lhe permitiam enxergar uma solução...

Pulou!!!




A Prostituta

Ela entrou puxando o homem pela mão.
Vinha apressada e resfolegante com o calor de verão e com o cliente pego na “pista”. Ela não tinha tido muita sorte neste dia. A “pista”...” tava concorrida pra caralho”, alem das colegas habituais, os “veados” ainda estavam tentando tomar o seu ponto. Uma colega pegou-se com um deles em uma briga feros e os outros vieram dispostos a dar o troco. Todo esse tumulto prejudicou os negócios, já que o bafafá tomou a avenida generalizando-se, com quebra-quebra e muita gente ferida.
Quando um carro parava para abordar as putas, as bichas atacavam tanto as meninas quanto os fregueses, no fim, bichas, fregueses e  putas foram juntas pro xadrez.
Ela escapou porque quando o tumulto começou, refugiou-se em um bar próximo. Depois de uma noite quase inteira sem pegar nenhum cliente, entrar naquele bar foi a sua sorte. Encontrou o “otário” lá, meio feio e tímido, foi preciso insinuar-se, pediu um cigarro ele não fumava...sem falar nada e com um sorriso de panaca olhava pra ela meio assombrado, meio sem jeito, pegou um fósforo que o atendente lhe deu e acendeu o cigarro que surgiu sorrateiramente da bolsinha que a menina levava. Olhou o cliente nos olhos  e oferecer os seus serviços. Ele prontamente aceitou e animado subiu com ela para o seu apartamento que ficava bem próximo e que ela dividia com mais duas das que tinham ido pra cadeia e aumentaria um pouco mais o seu cachê, já que o cliente estaria  economizando o dinheiro do hotel, ela lucraria mais um pouco. Tinha um trato com as meninas, trabalho só na rua nunca em casa, mas elas não iam voltar tão cedo e até lá ela teria bastante tempo de acabar o serviço.
Logo que fechou a porta começou a despir-se enquanto caminhava em direção a janela para abri-la pois fazia muito calor no apartamento.
Esperava que ele não lhe tomasse muito tempo, queria fazer outro programa a pista tava “bumbando” tinha muito cliente e já que não tinha mais puta para atender os clientes ela teria uma noite lucrativa.
Ainda meio vestida, olhou para o cliente e pôs-se a ajuda-lo fingindo interesse, elogiando-o mentirosamente.
O corpo jovem e ainda gracioso apesar de usado pela desenfreada pratica de sexo, traia a sua meninice. A decoração berrante e impessoal, a desarrumação, o jeito autômato que ela lidava com suas roupas, denunciava o frenético ritmo de sua vida profissional.Um apartamento, de frentes, cuja única janela, deixava ver a fachada do prédio do outro lado da rua.
Foi por acaso que ela viu em meio aos beijos cheirando a cerveja e a cachaça, a imagem do prédio a sua frente, não deu muita importância mas algo nele a perturbava, displicentemente pegou o membro raquítico que o cliente oferecia a ela pendente da bariguilha aberta, e colocou-o na boca ainda com a imagem do prédio na cabeça. Gemia teatralmente sem ater-se a seus movimentos, agindo maquinalmente, conforme o treinamento diário permitia que ela fizesse. Sem prestar muita atenção no otário, ela repassava mentalmente a fachada do prédio.
Tinha alguma coisa incrivelmente fora do lugar.
O que seria?
Desviou a atenção para o cliente, ele agora bastante excitado, com as calças abaixadas até o joelho dizia coisas do tipo: “- Vem benzinho chupa !”enquanto segura seu cabelo. Somente a capacidade de fazer uma coisa pensando em outra alivia o nojo que ela sente dos otários. Sua vida dura e sofrida até aquele momento a transformara em uma sobrevivente da selva de pedra, primeiro quando vendida ao seu primeiro “cafetão”, que a estuprou no quartinho de empregada na casa em que morava com a esposa e o pequeno filho, motivo pelo qual viera do interior vendida ao patrão por uma vaquinha magra e alguns quilos de farinha e feijão.
Mas ela não tinha mais raiva dele, foi ele quem a ensinou a sua profissão que mau ou bem, a sustentara com alguma comida e coisinhas que se tornaram toda a sua riqueza e que para ela eram muito importantes.
Sua atenção esta concentrada nestes pensamentos, enquanto o pênis em sua boca enrijece cada vez mais e o cliente balbucia palavras ininteligíveis de tesão.
Novamente a idéia de que algo está fora do lugar toma sua atenção. Como querendo espantar moscas invisíveis, ela  joga a cabeça  e os cabelos para trás, deita-se de costas na cama de pernas abertas. Puxa o cliente ainda com as calças pelo joelho, sobre si e abandona-se em mil pensamentos desconexos.
Uma pergunta continua a incomodá-la enquanto olha pela janela, da cama sob o cliente, a noite lá fora.
O que está errado?
O persistente pensamento, teima em voltar a sua cabeça, enquanto trepam.
Ele estremece e não goza, seu membro amolece ainda dentro da prostituta em espasmos de frustração.
Ela relaxa e fixa a atenção na janela.
Ele se dirige ao banheiro enquanto ela levanta e vai ainda nua em direção a janela.
Ei!
-          O que aquele maluco está fazendo na janela do 8º andar?
-          Meu Deus, ele vai pul...
As ultimas silabas sufocam com a puta em uma poça de sangue, que jorra de
seu pescoço como um rio que leva a sua vida .
            A ultima imagem que seus olhos vêem é a do cliente limpando uma navalha.
            Ela agarra-se ás lembranças de sua casa, de sua infância, suas brincadeiras de roda na escolinha pobre, o primeiro amor e  a necessidade de buscar sustento na cidade grande, seus pais e irmãos.
Como um náufrago agarra-se aos destroços de sua embarcação, ela apega-se as lembranças de sua vida numa tentativa desesperada de salvar-se. São quadros desconexos que vem e vão ao sabor de uma consciência com gosto e cheiro de sangue, com som de gargarejo a asfixiá-la.
O último sopro de vida parece querer dar-lhe forças para superar o insuperável, uma voz que dentro dela dizia:
“- Você não pode morrer!”
“- É jovem demais!”
  



A Velha


Passar a noite acordada, era uma constante em sua vida.
A solidão aos 64 anos tortura, matando aos poucos. A beleza da juventude, se fora há muito tempo juntamente com os amantes ocasionais.
Os dias ficaram longos, as alegrias ficaram poucas, o tédio tomou quase todos os momentos. Ela gasta o seu tempo fazendo crochet e olhando a rua onde mora há mais de quarenta anos.
Da janela de seu espaçoso apartamento de frente, aprecia dia após dia, as alterações ocorrendo ao seu redor.
Aquela era uma noite de suspiros ao pé da janela. Lembrar momentos felizes! Noite nublada e estrelada, com o tempo mudando ao sabor das emoções.
O ardente bafo vindo do asfalto, das muralhas de concreto e da boca do túnel que engole e vomita carros, sufoca, enquanto a brisa suave que vem do mar, faz correr na espinha um arrepio.
Vigiando o nada, atenta a tudo, ocupava-se com os prédios a sua frente. Especialmente com o segundo à direita, pois da janela do 8º andar, pendia meio pendurado para fora, o vulto de um homem!
Sem pensar muito, ligou para a polícia. Velha usuária do serviço de emergência, pode discar sem descolar os olhos da tal janela do 8º andar.... o telefone está tocando,....
Tu,tu,tu,...
Rápido,...
Tu,tu,tu,...
“Você ligou para o serviço de emergência da polícia militar, estamos transferindo sua ligação para um de nossos atendentes”.
-          Policia militar, em que posso lhe ajudar?
Fala uma voz polida e impessoal.
-          Tem um louco querendo pular do 8º andar!
Fala a velha excitadíssima!
-          Aonde senhora?
Diz uma voz sonolenta e enfadonha
-          Na P... I... quase esquina com N... S... de C... lado par.
A velha fala com rapidez e contentamento, por estar sendo útil e conseguindo salvar
uma vida que, com certeza, só deseja chamar atenção para si. Assim como ela mesma.
-          Estaremos encaminhando uma viatura para o local. Tenha uma boa noite.
Ela volta a mirar a fachada do prédio em frente no intuito de checar a situação do
suicida e para seu espanto, não o encontra.
            Levantando-se da poltrona e debruçando-se na janela, olha para baixo e constata que a cidade lá em baixo continua tranqüila sem grandes alterações da rotina, pelo menos que fossem percebidas de sua janela, o que significava que ele não pulou. De certo, desistira de tamanha loucura.
            A policia tomaria por trote seu telefonema e ela estaria metida em encrencas, já que não contava mais com amigos influentes como outrora, quando prestou vários serviços a um certo general que freqüentava furtivamente seu apartamento na década de 60 e para quem costumava observar apartamentos de estudantes e outros indivíduos suspeitos. Um desses apartamentos chamados pelos subversivos e pelas forças de segurança de aparelho, foi estourado com sua ajuda e era até hoje motivo de orgulho e saudade.
            -É ele de novo !
            Pegou o telefone colocado propositalmente em uma mesinha próxima.
            Discou 190...
            Tu,tu,tu
            rápido...
            tu,tu,tu
            “ Você ligou para o serviço de emergência da policia militar, estamos transferindo sua ligação para um de nossos atendentes.” Disse uma voz metálica.
            -Policia Militar, em que posso servi-lo?
            -Sou eu outra vez.
            -Eu Quem?
            -A mesma que ligou ainda a pouco para informar que tem um homem pendurado na janela do oitavo andar do prédio em frente.
            -E onde fica o prédio?
            -Av. P... I... com N... S... de C...
            -Ai meu Deus! Ele pulou! Que coisa horrível!
            -Estou enviando uma viatura para o local. Obrigado por nos contatar.
            Na verdade não se sentiu reconfortada por haver colaborado mais uma vez com a
polícia. Ela sentia uma certa frustração por não ter podido evitar o suicídio e uma excitação com o que acabara de presenciar. Conjecturava sobre o que levava alguém a cometer um ato tão desesperado, talvez a solidão, talvez o desemprego, talvez ambos, o que teria levado aquele coitado a pular da janela, pondo fim a uma vida enfadonha e frustrante, monótona e solitária?
            Sentiu um aperto no coração, abriu a janela e olhou os seis andares que separavam-na da rua e cogitou pular. Chegou até a puxar uma cadeira para perto da janela na intenção de acompanhar, solidariamente, o suicida mas faltou coragem e a cadeira ficou abandonada ao pé da janela entre aberta pela qual podia ver o fim do triste homem.
            Não agüentando de curiosidade mórbida, passou maquinalmente a mão, primeiro no xale, depois na chave e decidida, abriu a porta apesar das palpitações de seu coração.
            No corredor, encontrou-se com a sirigaita fofoqueira do apartamento cuja porta fica contígua a sua.
            -Boa noite vizinha, a senhora viu que um homem acaba de pular do 8º andar do prédio ai em frente?
            Disse a sirigaita de dentro de suas roupas extravagantes.
            Aquela velha futriqueira devia estar espiando pelo olho mágico, ela só pode ficar de plantão pois sempre que ela saía, a sirigaita aparecia na porta e tentava puxar assunto intrometendo-se em sua vida e na dos vizinhos. Sem fazer-se de rogada, a velha, com ares de superioridade, contou tudo o que havia visto pela janela omitindo o fato de ter ligado para a polícia, enquanto esperavam o elevador que não vinha.
            A demora foi tanta que tomaram a decisão de descer pela escada os seis andares. Esta empreitada foi dura para a velha senhora que já sentia palpitações, fruto do quadro que presenciara de sua janela, a curiosidade a corroia e ela não deu bola para os sinais claros que seu coração emitia.
            Chegaram finalmente a rua. A velha com um andar difícil e a fofoqueira sem parar de falar ambas andavam apressadas e quase corriam.
Enfim, chegaram a calçada do outro lado da avenida onde já havia um aglomerado de pessoas olhando para o suicida.
Elas aproximaram-se lentamente do tumulto, a fofoqueira sem dar muita atenção a velha falava sem parar, nem percebeu que ela andava cada vez mais devagar e que arfava com dificuldade levando a mão ao peito e a garganta sucessivamente , respirava aos socos.
Encontraram o corpo de um homem completamente desfigurado, com as tripas e os miolos espalhados pela rua. Cena chocante de se ver e foi neste momento que a velha sentiu adormecer o braço esquerdo juntamente com uma forte dor no peito. Ela sabia o que isso significava. Seu velho coração não agüentara tanta emoção e esforço. Descer aquelas escadas havia feito realidade o seu maior pesadelo outro enfarto. Desta vez, fatal. Não foi possível nem socorrê-la, ela caiu fulminada na rua sobre a mancha de sangue que se espalhava e provinha do suicida que tentara salvar, e que jazia inerte ao seu lado.




O Mendigo




            Se este bosta de segurança de boate não encher o saco, tiro um ronco aqui mesmo, na frente da loja de carros importados esquina de P.... I... com N... S... de C...
-Aqui pode?
Perguntou ironicamente.
-Mas vê se não atrapalha a passagem!
Respondeu o segurança censurando.
            Parecendo exibir-se ou chamar a atenção. O mendigo sujo e alquebrado, puxa a calça amarada de fio de cobre tão suja e rasgada que mais parece uma saia de saco de carvão, levanta até o peito e fazendo uma careta de satisfação, senta-se no chão ao lado dos trapos e pedaços de papelão, que sempre trazia sob o braço.
            A noite seria curta. Tinha que passar bem entre as 4hs45min e 5 horas para conseguir um pão dormido e um pouco de café, na padaria.
            O relógio do canteiro central marca 3hs26min ele puxa um toco de cigarro detrás da orelha e olhando para o segurança que o observa de braços cruzados, gesticula com a mão que segura o cigarro dando a entender uma pergunta não dita: “você tem fósforos?”
            O segurança com cara de poucos amigos, levanta-se de seu banco e põe a mão no bolso, parado fala tirando o isqueiro:
-Porra! Quer que eu vá aí?
O mendigo pulando e fazendo pirueta, aterrissa na calçada bem ao lado dele.
Cumprimenta com uma mesura e se aproximando do isqueiro, acende o cigarro.
            Ao voltar-se para a N... S... de C..., buscando com os olhos os seus preciosos trapos, da com a presença ao lado deles, do velho amigo sarnento.
            Olha novamente para o relógio no meio do canteiro e coça a barriga. Remexe em seus trapos puxando uma garrafa plástica, da uma boa golada e abre os olhos, fitando sem ver, o prédio a sua frente. Demora alguns momentos olhando os burgueses em suas gaiolas douradas guardados por mil seguranças e parafernálias eletrônicas, com suas mulheres certinhas e seus filhos ranhentos, suas vidas aparentemente tão “de bem”! Hipócritas! Ecos seu de outrora, vivendo uma vida que ele já vivera a muito tempo e que já não lhe pertencia mais, reflexo do que fora ele em um passado distante.
Enquanto olhava distraidamente para o prédio a sua frente, pensava em duas crianças com 9 e 7 anos que abruptamente perderam seu pai sem ao menos o consolo da morte para aliviar seu sofrimento, foram simplesmente abandonadas, rejeitadas, descartadas como fossem cueca velha que se descarta quando o elástico não prende mais e ela insiste em ficar caindo dos quadris e entram direto no anus. Pareceria pura covardia, mas na verdade era coragem de não passar de provedor a peso morto, de não vir a ser um fardo nos ombros cansados da esposa. Deixara para ela o que tinha de material e sem mais nem menos, sem despedida nem adeus, em um dia nublado, saiu pra comprar cigarros e nunca mais voltou.
 Todo aquele antigo horror voltou a assombrá-lo, apertando-lhe a garganta. Ele lembrou da garrafa e de que ela agora estava vazia não oferecendo mais o consolo etílico de que tanto precisava.
E assim foi que ele viu no 8º andar do prédio a sua frente, um vulto na janela.
-          Será que ele vai pular?
Murmurou para sí .
            Refletindo sobre o vulto na janela e sobre si, recostou-se na parede da agência de automóveis importados com a garrafa de água mineral vazia em uma mão e o toco de cigarro na outra, esperando o desenlace da história.
-          Eu quero que ele se dane, foda-se!
Ficou laborando enquanto suas feições lhe traem e revelam um sentimento de
compaixão própria de quem se identifica com objeto de observação.
O mendigo entende o suicida em seu desespero.
De uma forma ou de outra, ele mesmo fora também um  dia, alguém que saltou de
uma vida mediocremente burguesa, para a liberdade das ruas. Ele cometeu suicídio social abandonando mulher e filhos a própria sorte , deixou RG e CPF para traz e enveredou em uma aventura as avessas, pelo mundo irreal e primitivo das ruas, somente ele e sua amiga inseparável, a cachaça. Sua consciência, algumas vezes, tenta acorda-lo mas ele toca álcool na consciência e segue vivendo sua aventura as avessas.
            Olha de novo para a janela do oitavo andar a procura do vulto, não o vê, olha agora para a rua à sua frente, é uma avenida larga que conduz a visão para a boca de uma túnel. Nada ali também, pensa esquecer do cara no alto do prédio mas ao olhar de novo assiste a uma sena eletrizante  que arrepia   sua espinha como se sua alma fosse traspassada por uma flecha. O cara pulou... andando rapidamente, o mendigo transpõe a sarjeta e atravessa a avenida, meio trôpego acelera o passo em direção ao meio da rua assim sem nenhuma atenção ao mundo ao seu redor dirige-se para o lugar onde o homem caiu pensando: “ será que ele tem algum dinheiro ou relógio talvez, uma aliança... alianças dão uma boa grana” enquanto se dirigia para a calçada do outro lado da avenida em passos tortuosos, um carro em grande velocidade arranca da esquina e o acerta em cheio, dando uma pancada certeira em suas pernas fazendo-o subir a uma grande altura e ele cai de cabeça se esborrachando a poucos metros do outro homem que havia pulado da janela.



O Segurança


            -Você vai ver com quem tá se metendo!
            -Se você não sair daqui agora vou te arrebentar na porrada  filhinho da puta, vambora vai saindo!
            -Você vai ver , filho da puta! Tu vai te fuder!
            Mais um bando de otários querendo bancar os machos. Toda noite tem pelo menos um, querendo aparecer. E toda noite eles vão embora ameaçando se vingar .  Nada acontece, voltam pra casa com o pescoço doendo dos sopapos que levaram e não se arriscam a levar mais bordoada,já não é mais jovem pra tanta atividade, pensou.         
            Ajeitando a quarenta e cinco no cós da calça, ele pensa que até que seria bom se alguns deles voltassem pra tentar alguma coisa, a velha pistola dos tempos do DOICOD
voltaria a cuspir chumbo depois de uma longa aposentadoria. Passou a mão pelos ralos cabelos brancos e tirando o lenço do bolso traseiro da calça, enxugou a testa morena encharcada de suor.
            Aquela noite estava quente, especialmente, quente. Uma brisa suave corria do mar em direção ao túnel. O calor do asfalto e das barulhentas descargas dos carros que aquela hora já não eram muitos, abafavam o ambiente tornando o ar sufocante. O termômetro  no meio do canteiro da larga avenida marcou 32º  e a noite já ia longe eram quase 3:30. Olhando para o relógio notou a aproximação de uma figura no mínimo cômica mas ele, que não tinha vocação para o riso, levantou a sobrancelha e amarrou a cara.
            O mendigo que se aproximava trazia um certo ar irreverente estampado na cara, eles já haviam se cruzado pela noite do bairro e para falar a verdade, não nutria por ele nenhuma simpatia. O ex-policial não era muito afeito a esse tipo de gente não bebia mais e detestava drogados, também não era muito simpático com a população de rua, entretanto mantinha uma relação cordial com as putas da boate e com os fregueses. Procurava, não sei bem se por necessidade ou por antagonismo natural do ser humano, ser simpático com ambos o que para ele significava uma cara nem tanto amarrada e alguns monossílabos amarelos trocados eventualmente.
            O que ele mais detestava eram os filhinhos de papai bancando os valentões. Isso ele não tolerava!
 Nem que mexessem com as meninas da boate!
Ali era seu território e ninguém ia bagunçar com a ordem no seu pedaço ou iria se ver com ele exatamente como o frangote que a uns cinco minutos antes do sujo mendigo aparecer, ele botara pra fora.
 Aqui não violão!
Ele já estava cansado daquele trabalho. Não tinha mais idade pra ficar a madrugada toda acordado, no seu corpo forte e avantajado começavam a surgir as marcas incontestáveis da idade. Os 56 anos dos quais 37 na força policial pesavam.
O que aquele traste queria? Fogo ?
Levanta-se de seu banco e pondo a mão no bolso puxando o isqueiro diz:
-Porra! Quer que eu va aí?
Pulando e fazendo piruetas, que não contribuíram em nada para melhorar o humor do segurança, o mendigo aproximou-se e acendeu o cigarro.
Afastando-se em seguida para juntar-se aos seus trapos fedorentos e ao cão cheio de sarna, o segurança não deu mais importância aquele dejeto que um dia já fora gente e que hoje era apenas um monte de carne e ossos, insistindo em continuar andando por ai só pra enfeiar a paisagem.  
Desviando o olhar da cena comum que o irritava bastante mas com a qual aprendera a conviver, voltou seus pensamentos para a esposa e suas recomendações de calma, gentileza e um pouco de bondade, para que a vida medíocre que ele levava ao lado dela tivesse mais sentido e alegria.
Na próxima semana completaria 30 anos de casado e 5 que deixara à força policial e passara a guardar a porta da boate, emprego que um amigo da polícia conseguira para ele depois de sua expulsão por causa daquele filhinho de papai viciado do caralho que ele pegara fumando maconha e que o desacatou, ele não teve dúvida de quebrar alguns dentes do filho da puta, só não tinha como saber que ele era filho de um juiz e os dentes quebrados junto com a cara inchada do moleque, que ainda por cima era menor, lhe renderam uma baixa desonrosa.  Perdera tudo inclusive sua patente de sargento e sua aposentadoria.
Mas quem tem amigos não morre pagão, como diz o ditado, e até que sua mulher tinha gostado de não viver naquela apreensão. Ela agora dormia bem melhor que nos tempos da PM, apesar de ter que ralar mais fazendo salgados para fora. A tristeza de sua vida era a falta de filhos até tinha ajudado a criar um sobrinho que hoje estava bem encaminhado com emprego fixo e fazendo faculdade de engenharia elétrica, mas que apesar da felicidade que isso lhe proporcionava, não deixava de sentir bem lá no fundo de sua alma uma pontada de frustração.
Entretido nestes pensamentos, notou alguma coisa estranha acontecendo do outro lado da avenida logo depois da esquina, formava-se um pequeno grupo de pessoas, assim ocupado em decifrar o que acontecia ouviu um forte estrondo vindo do seu lado direito. voltando-se para olhar instintivamente viu quando o carro acertou em cheio o mendigo que voava pelo ar esborrachando-se na avenida bem próximo a ele . O coitado aterrissou bem ao seu lado de cabeça no meio da rua, coisa feia de se ver. Enquanto levantava-se e dirigia-se para o mendigo viu pelo canto do olho o carro parado bem perto e ouviu a porta se abrir. Virando-se percebeu algo na mão do motorista, era o rapas que ele a minutos antes havia expulsado da boate abaixo de pancadas, só percebeu que ele tinha uma arma quando sentiu o primeiro tiro, ainda teve tempo de vê-lo entrar no carro antes de conseguir sacar o velho 45    a dor lancinante que sentia e a falta de ar nos pulmões diziam-lhe que aquela era a ultima vez que segurava a sua pistola e que não veria mais a sua querida esposa. Finalmente ele atira meio sem forças e sem nenhuma pontaria não acertando nada. Os presságios de desgraça se cumpririam e a sua querida mulher não o veria naquela manhã.




(....)




            O assassino sai apressado do prédio suando e olhando para todos os lados a procura de olhos que possam telo visto e possivelmente o reconheceriam, olha para as duas velhas na calçada , uma gritando e amparando a outra que imóvel parece morta.
            Ele mira a esquina e suando com uma cara de preocupado, respira fundo sem olhar para trás, ao virar a direita da alguns passos, vira-se para trás e tronando a olhar em frente com um leve sorriso no rosto some na certeza da impunidade, pois se de alguma forma fosse pego as varias internações psiquiátricas seriam álibi perfeito. Ele tira o paletó e joga junto a uma lixeira lotada mais a diante joga fora o óculos e o bigodinho caminha agora relaxadamente pela calçada afastando-se da sena do crime e conforme os níveis de adrenalina e dopamina vão reduzindo no corpo dele, a culpa começa a invadi-lo pouco a pouco e os prédios da rua estão olhando pra ele querendo engoli-lo, soterravam sua mente com alucinações opressivas e angustiantes. Ele sabia que estava sentindo falta da medicação. Fazer o que! ... a farmácia publica estava em greve... e nem todos os remédios ele conseguia de graça...Tinha que satisfazer aquele desejo de orgasmo, seu pequeno problema com o sexo era um tormento causado pelas crises psicóticas e o sangue era consequência de seu prazer sexual reprimido pelas crises...
            Pensando, alucinando, já sem controle, entra pela portaria de seu prédio. O elevador está parado no térreo, entra e sem fôlego respira ofegante. Seu andar, a porta se abre e ele sai.
Chegar a porta do pequeno apartamento não constitui tarefa difícil mas muito penosa suas pernas parecem feitas de chumbo, arrasta-se pelo corredor até seu portal de segurança, vira a chave na fechadura e enfim, mergulha para a segurança.
            Ao entrar fecha a porta com um gesto de alívio e violência, tranca-a e atravessando a sala dirige-se a janela. Ao abri-la olha para baixo  e sente a brisa no rosto suado e confuso. Sabe em sua alma que não há mais como continuar com aqueles jogos. Voltar para o hospital só com ação judicial, a defensora publica que o atendera fora solícita mas.... tudo demanda tempo ...e tempo... o dele já havia passado... ele não podia continuar daquele jeito.
            Tirou as calças depois dos sapato a caminho da poltrona, virou-se, suspirou profundamente e sentou. Olhava a janela aberta como fora ela um portão para a liberdade e pensava....

Pulo?



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