O Homem do Farol


... Seu domingo estava sendo, até aquele momento, um verdadeiro pesadelo. A chuva e o vento frio que soprava de Sul, só recomendavam ficar quieto sob as cobertas mas,  ele tinha que levantar. Olhou o ambiente ao seu redor ainda na penumbra das janelas fechadas e conformou-se com a enorme bagunça em que seu quarto transformara-se. Não havendo outro jeito levantou-se e coçando a barriga e a cabeça, ficou totalmente de pé. Na meia penumbra, tateou procurando os sapatos. Esbarrou na garrafa de cachaça que se encontrava embaixo da cama e sorrindo, levou-a a boca e tomou um prolongado gole. A aguardente desceu por sua garganta proporcionando-lhe uma sensação de bem estar ilusório, pensou: ”pra cortar a ressaca...”, e tomou mais um gole. Com a mente embotada pelo álcool, dirigiu-se a porta esquecendo-se dos sapatos, abrindo a, olhou o mar bravio e a chuva, voltou-se fechando-a e displicentemente jogou-se na poltrona rota e esfiapada que repousava adormecida a um canto da sala, murmurando para si:”o gramado do farol pode esperar um dia de tempo bom, hoje não vou cortar aquela bosta de grama...” e tomou mais um trago da cachaça.
                Aqueles eram tempos difíceis para o velho cabo da marinha, encostado neste posto de faroleiro ha quase um ano, ele se largara aos cuidados da bebida e com ela passava os dias de tédio e isolamento. Já não era mais um marinheiro, era agora um zelador de farol automático, nem escutar os possíveis pedidos de socorro no radio PX de sua casa ele fazia, dia após dia ele se abandonava naquela poltrona maldizendo o destino. Aliás, reclamar da sorte e de perseguição era o que ele mais fazia quando encontrava um ouvido desavisado que se prestava a ouvi-lo.
                A única atividade que ainda teimava em fazer era pescar. Horas a fio na beira da praia com o caniço na mão, ele ficava observando o mar na companhia da garrafa de cachaça. Horas sem pensar em nada, apenas observando o vai e vem das ondas e o movimento da linha no caniço a espera de um peixe que lhe mordesse a isca para oferecer o saboroso prazer de lutar com ele.
                E foi precisamente em um dia de pescaria que conheceu o carioca.
“-Eu estava caminhando na praia, ventava, eu tentei acender um cigarro e o meu isqueiro não funcionou, irritado, olhei ao redor e vi um homem solitário que segurava um caniço na beira d’água, me aproximei e perguntei puxando conversa “pegou alguma coisa nesse frio?” O homem respondeu lacônico balançando a cabeça: “ hummm...” e completou apontando o balde que repousava perto de uma cadeira de praia mais atrás, “dois papa-terra”e olhando para o mar sem se virar completou,”não tá bom pra pesca hoje” e começou a recolher o material de pesca. Chegando ao ponto, perguntei: ”o senhor tem fósforo? “ Ele meteu a mão no bolso e retirou um isqueiro que me entregou sem dizer nada. Eu acendi o cigarro, agradeci e fiz menção de ir embora, ele pegando a garrafa de bebida me deteve dizendo ”quer um trago?” “ Não  obrigado não bebo” respondi. Ele continuou falando sem se importar se eu ouvia ou não: ”Essa é minha única companheira...” e deu um longo gole na garrafa voltando a atenção para mim exclamou: ”Você é novo aqui?”
Eu respondi que havia me mudado para cidade ha pouco tempo. Retomou a conversa como se eu não estivesse ali, e sem me olhar foi dizendo: “eu já estou aqui há algum tempo eu tomo conta do farol, mas não tem muito a se fazer porque este farol é automático, então eu passo a maior parte do tempo pescando.” Tomou outro gole como para criar coragem e continuou: ”me encostaram aqui como última chance. Era isso ou rua! É que eu comecei a beber um pouco demais quando minha mulher me abandonou, aquela vaca! ela implicava comigo porque eu gosto de tomar um drink e às vezes chegava tarde em casa...” e tomou outro gole da garrafa quase vazia, “...um dia quando cheguei do mar ela tinha ido embora e levado tudo que tinha na casa só deixou uma poltrona velha que eu trouxe comigo. Nem dos meus filhos eu me despedi e tem quase um ano que não os vejo, ela impetrou mandato de segurança contra mim...” Com uma expressão triste continuou, “ O meu comandante me disse que eu estava bebendo demais, mas pudera eu tinha que beber, a mulher me deixou por um outro e ainda levou meus filhos e não me deu nem o endereço...” tomou outro trago, limpou a boca na manga da camisa, suspirou com os olhos cheios de dor e ressentimento, olhou para o nada e exclamou: “ ...aquela vaca!” eu não sabia o que dizer e apenas consenti com a cabeça e fiquei constrangidamente parado ao lado do faroleiro sem abrir a boca. Passaram se minutos intermináveis de silêncio onde se podia ouvir o sussurro do mar e as ondas surrando a areia, por fim eu falei alguma desculpa esfarrapada e fui embora pensando naquele homem .  “
...o mato crescia ao redor da casa e do farol como a barba no rosto do homem incumbido de cuidar das propriedades públicas. Sua apatia refletia em seus olhos turvos de bebida e tristeza. Pensava: “com esse tempo não posso fazer nada lá fora, vou tomar mais um trago...” virou mais um gole da cachaça e percebendo ser o último, levantou-se da poltrona dirigindo-se à porta, Pegou o guarda-chuva a um canto, pois podia faltar tudo para ele menos a água-ardente. Comer não era uma necessidade, banhar-se também não! Portanto, ele vivia naquela nojeira e desleixo e punha a culpa de tudo na ex-mulher  e no seu comandante, nunca nas pancadas que aquela levou e na beberagem. E foi sentindo-se assim que saiu de casa naquele domingo chuvoso em busca de sua única companheira, a bebida. O mercado estava vazio apesar da caminhada na chuva ele voltou rápido e com uma notícia boa estava dando papa terra e ele iria pescá-los! Todos os que pudesse. E voltando-se para a praia, deu lhe uma boa olhada e seguiu por ela, andaria pela areia apesar da chuva fina, o que é uma decisão estranha a principio com aquele tempo, mas ele queria conferir as condições de pesca pois uma idéia fixa o tomou por completo, a pesca! O vento era instável mas fraco vindo de Sul do oeste outra orla era de oeste e parecia que mudaria mais para o norte onde, nuvens negras pairavam no horizonte, o céu prenunciava muita chuva e vento forte, pois, o rodopio que ele fazia mudando de direção, mostrava que o tempo ia ficar muito feio.Mas nada metia medo ao homem do farol, convivia demais com a dor, o mundo externo não o afetava mais, apenas contava a possibilidade de ficar na beira do mar lutando com um peixe, depois cozinhar e comer e é claro, o tempo de espera regado a pinga. Isso aquece seus ossos e não ia ser o clima que o impediria na empreitada. Essa determinação o levara a  confrontar-se com algo mais tenebroso que seus pensamentos. E envolto em conjecturas sobre sua vida miseravelmente infeliz, andava, divagava, estudava o mar,procurava em meio a confusão do mar mexido poças, espaço, um buraco na areia que proporciona se ao peixe descansar. Ouve se  um estrondo, ele nem liga, um raio ao longe, acha graça na poderosa descarga elétrica e de súbito, um clarão muito forte envolve toda a beira mar iluminando toda a extensão da praia e a orla ficou clara feito primeiro de janeiro, décimos de segundo após um estrondo ensurdecedor calou tanto o mar quanto o vento.



Alexandre de Medeiros Barcelos da Silva
Coruja

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